O preconceito racial ainda está enraizado na sociedade brasileira e ele causa problemas psicológicos profundos. Saiba mais sobre o assunto.
Chimamanda Ngozi Adichie é mulher, negra, nigeriana e autora de livros best-seller que tratam de feminismo, política, racismo, entre outros temas importantes para serem discutidos na sociedade atual. A obra “Americanah” venceu o National Book Critics Circle Award e foi eleita uma das 10 melhores de 2013 pelo The New York Times Book Review.
Adichie também fez sucesso com as famosas palestras TED Talks. Em O perigo de uma história única (2009), ela alerta sobre a perpetuação dos estereótipos que reforçam o preconceito. A autora nigeriana foi para os Estados Unidos fazer faculdade e sua colega de quarto lhe perguntou onde tinha aprendido a falar inglês tão bem. O que a colega não sabia e ficou realmente surpresa — senão decepcionada — é que o inglês é a língua oficial da Nigéria.
Após alguns meses no país e muitas confusões permeadas pelos esterótipos, “ela entendeu que essa era a única história que os norte-americanos ouviam sobre a África: o continente equivalia a majestosas paisagens e belos animais, povos envolvidos em guerras eternas, fome, miséria e Aids. Sua história sobre a África estava cheia de estereótipos. E não é que os estereótipos sejam falsos, defende. São somente incompletos”, publicou o El País.
O que é preconceito?
O psicólogo, mestre, doutor e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, José Leon Crochík, é autor do livro “Preconceito, Indivíduo e Cultura”. Para ele, “uma das questões centrais sobre o preconceito refere-se a como se dá a relação entre os aspectos psíquicos e sociais na sua constituição. Conforme as pesquisas de Allport e de Adorno mostram, o preconceito não é inato; ele se instala no desenvolvimento individual como um produto das relações entre os conflitos psíquicos e a estereotipia do pensamento – que já é uma defesa psíquica contra aqueles -e o estereótipo, o que indica que elementos próprios à cultura estão presentes”.
A questão racial
“Quando fui ao Brasil (em 2008), amei o país, me senti confortável. Perguntei sobre raça e fiquei assustada com quantas pessoas me disseram que não havia problemas. Todas elas eram brancas. E pessoas que pareciam negras afirmavam que sim, existia um problema. É a história que o mundo conta sobre si mesmo, que existe esse maravilhoso ponto em que todo mundo é caramelo e está tudo bem. Não está”, declarou Adichie em entrevista ao Estadão.
De acordo com o IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de negros ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras. Embora os dados contribuam para pintar o Brasil como um país multi-racial, ele é um dos que mais perpetuam o racismo. “Segundo o Atlas da Violência 2017, a população negra também corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios“, informa a CartaCapital.
A verdade é que os grilhões da escravidão ainda amarram o povo brasileiro, seja na estrutura social, no mercado de trabalho ou nas próprias relações interpessoais. Taísa Julio Vicente, professora de história e ativista, analisa: “as marcas da escravidão são tão intensas que ainda estruturam as relações em nosso país. Ser negro, nesta sociedade, ainda remete a uma condição de ser subjugado, é como se a liberdade fosse um favor. Penso que as práticas racistas ainda são ferramentas de um pseudopoder pois o negro era uma propriedade, no passado, e na lógica capitalista o “ter” é maior que o “ser”. Ter um indivíduo subjugado é símbolo de poder.”
Ela ainda relembra que, na história brasileira, sempre foi uma questão racial e não de imigração, pois os italianos vieram para o Brasil recebendo incentivos para realizar o branqueamento do país a fim de reduzir os efeitos que a escravidão trouxe no sentido estrutural da sociedade brasileira em formação. Ou seja, o preconceito racial no Brasil sempre existiu.
Um dos objetivos de Jussara Dias, diretora do Instituto AMMA Psique e Negritude, é resgatar a confiança, autoestima e saúde mental e emocional de pessoas negras que sofrem impactos psicológicos devido a atitudes racistas. “A exposição histórica às condições servis criam problemas de identidade em algumas pessoas. Ao enfrentar um caso de violência racista muitas acabam se rebaixando. É necessário resgatar a autoestima dessas pessoas”, aponta a diretora.
A pesquisa realizada em 2003 pela Fundação Perseu Abramo apresentou dados preocupantes: dos cinco mil entrevistados, 50% apresentou um nível de preconceito leve contra pessoas da cor negra e 25% indicaram uma condição média dessa discriminação. A preocupação do instituto AMMA é trabalhar as questões emocionais e psicológicas através de estudos e palestras com o objetivo de diminuir esse número para, assim, reduzir o racismo e os impactos que ele causa.
Impactos psicológicos
Os efeitos psicossociais do preconceito e racismo estão relacionados a problemas inter e intra-pessoais, sociais e institucionais: “o racismo interfere nas dinâmicas psicológicas, relações interpessoais, sociais e emocionais na família e vida profissional, além das interações com instituições e seus serviços. Os tipos de danos causados pelo racismo, em diferentes níveis, cria a imagem individual, social e institucional de vulnerabilidade”, explica Clélia R. S. Prestes, em seu artigo “Mulher negra: resistência e resiliência”.
Ao relacionar o racismo e preconceito e suas consequências psicológicas, podemos falar de dois fatores atacados diretamente: a identidade e a autoestima. “Não possuindo referenciais identitários valorizados na nossa sociedade (heróis, pessoas bonitas, inteligentes) resta ao grupo subalterno se identificar com a sua “inferioridade natural” ou reivindicar para si um ideal de ego branco”, explica o mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante da Comissão de Direitos Humanos do CFP, Valter da Mata.
O estereótipo de beleza é um dos muitos exemplos de preconceito.
Os tipos de preconceitos vão desde a necessidade constante dos negros lutarem contra os padrões europeus de beleza, até a falta de oportunidades no mercado de trabalho para eles, o que ainda persiste em grande número.
Em consequência disso, Valter da Mata explica que muitos problemas psicológicos podem ser desenvolvidos, como baixa autoestima, em que as pessoas cuja raça não é branca valorizam-se pouco e acreditam que são inferior. A depressão, o alcoolismo, a ansiedade, a autodepreciação e a síndrome do pânico surgem do racismo.
Outra problemática que o psicólogo apresenta é que a maioria das teorias utilizadas pelos profissionais da área têm origem em países europeus ou nos Estados Unidos e possuem pouca conexão com o legado cultural de povos asiáticos, africanos e indígenas. “Assim, as formas de subjetivação da população de baixa renda do Brasil, que tem forte influência das populações africanas e indígenas, podem ser vistas como patológicas, e as expressividades dos comportamentos também podem ser vistas como inadequadas. É preciso que os (as) psicólogos (as) saibam que o racismo existe em nossa sociedade e afeta de forma decisiva a nossa forma de compreender o mundo”, observa.
Segundo um artigo publicado no Jornal Brasileiro de Psiquiatria, “os sujeitos de cor negra permaneceram, em média, 71,8 dias internados (em hospitais psiquiátricos), enquanto os de cor parda permaneceram 20,3 dias e os de cor branca, 20,1 dias”. São essas pessoas que enfrentam maior desamparo, pois não recebem visitas e, muitas vezes, não possuem familiares ou amigos que possam oferecer assistência após o período de internação, informa a Revista Fórum.
Segundo as análises realizadas por Costa (1986), Souza (1990) e Fanon (2008), fala-se de distorção de identidade. é possível pensar nos efeitos psicológicos do racismos serem materializados em consequências extremamente prejudiciais ao corpo, mente e à identidade. O ideal de ser branco começa a atuar no imaginário social. A consciência racial e a revalorização da negritude são meios de reverter a distorção de identidade”.
As formas de preconceito racial ainda estão enraizadas na sociedade e é preciso que a população se conscientize de que o problema ainda é uma realidade, uma que faz vítimas nos mais diversos âmbitos. A questão psicológica e o racismo são pontos pouco abordados ainda, e é preciso fazer com que o assunto seja discutido para que menos pessoas sofram com ele.